quarta-feira, 28 de julho de 2010

PISTAS PARA LEITURA E PARTILHA DOS CAPÍTULOS 23-24


Esta III parte do Livro é “outro livro novo, digo, outra vida nova” (23, 1); é Deus que vive nela, pela frequência e crescimento das graças e, consequentemente, pela mudança do seu comportamento.

No entanto, não se acabam as lutas: “mudou-se a causa da guerra, embora não tenha sido pequena” (8, 3); agora não se trata dela “contra Deus” (I Parte: V, 1 a 9), mas de Deus e ela contra os opositores e o demónio.Portanto, ajuda continuar a anotar o seguinte (cf. pistas gerais V, 1 a 9):a)como é que ela se descreve;b) os momentos em que ora, c)num quadro sinóptico: 1) as diferentes mercês de Deus e, em contraste, as diferentes razões que a fazem temer; 2) quais os bons acompanhantes que ela ‘nomeia’ e que méritos lhes agradece e louva e, por outro lado, quais os que se lhe revelam maus 1 e o que é que ela lhes censura 2.

Pistas particulares para os capítulos 23-24:

“Volta a tratar do discurso da sua vida” (cf. título do capítulo 23), portanto: 1) A que anos se refere? 2) Perante o crescimento das mercês e, ao mesmo tempo, dos temores, o que fez ela, e porquê? 3) Apesar do seu notável adiantamento (cf 23, 1, no final), alude ainda a certos apegos: identifica quais. 4) A que se refere ela numa certa altura destes capítulos com “fazê-la voar” (23, 10) e qual foi a chave disso? 5) Era muito ou pouco o que a santa sabia dizer da sua oração? Porquê? Que dizia ela, basicamente?

Para meditar depois da leitura do texto:

1. Temos vindo a examinar o papel desempenhado no processo da Santa pelos bons e maus acompanhantes e amigos espirituais (cf. pistas gerais, c, 2); revive as tuas experiências a esse respeito, sejam as pessoais ou as de outros, e reza a partir delas: agradece, intercede, examina-te…

2. Entre as várias razões que a faziam temer, há uma de tom muito sanjuanista (cf. “largar o seu próprio modo”) e na qual devemos ter reparado com a pista 5: de repente não conseguia ‘meditar’ (cf. 23, 2.12). Se não aprofundámos isto nos graus correspondentes de oração, podemos agora fazê-lo: já experimentaste isso e/ou acompanhaste outros? Reza-o, examina-te…

3. Já sabíamos, desde a I Parte, da afeição da Santa a livros bons e inovadores; agora também afeiçoada às novas espiritualidades, como os jesuítas (23, 3) e inclusivamente nos seus inícios como escritora, para conseguir explicar-se (23, 14-15). Logo, foi uma «buscadora»: a)séria (ex. bons livros e pessoas que a ajudassem) e perseverante, e b) nada timorata (livros e ajudas não só bons mas inovadores, “arriscados”): e tu? Cuidas da tua formação permanente e sua qualidade? O acompanhamento espiritual ou o confronto com pessoas de experiência e letras (como já se falou em fichas anteriores)? Reflecte, agradece…

4. Uma vez mais, a Santa lamenta-se de uma tentação ‘moralista’ e paradoxal: atrasar a busca de meios espirituais para quando se encontrar melhor, do ponto de vista moral e espiritual, sendo que, para isto (melhorar) é necessário aquilo (ter ajuda) (23, 4). Se não se trabalhou isto na ficha dos cap. 18-19, regressar à pergunta 3: ler o que ali se propunha e fazê-lo agora.

5. Embora a Santa não entenda porque razão as pessoas que a acompanham lhe imponham resistir às mercês – o tipo de oração que trata nestes capítulos – fá-lo obedientemente e, como resultado, obtém duas lições muito clarificadoras sobre a obra de Deus e sobre ela mesma em tudo isto: quais são? Conheces experiências parecidas? Que implicações pensas que tem? Também aqui, como de quase tudo, poderia exercitar-se a oração: louvor, intercessão…

6. Já comprovaste certamente que, apesar da notável melhoria da santa, ainda perdurava um significativo problema afectivo: qual a tua opinião sobre o facto de, como no final do cap. 9, se tratar de uma graça, e não o seu próprio esforço, quem acaba por libertá-la? Por outro lado, achas que isto tornou a Santa pouco amigável ou relacionável?

7. Que dizer da teologia do matrimónio que está subjacente a textos como 23, 6-7.10?



NOTA: Não menosprezamos a importância que tem, e que a própria Santa atribui, à obediência em tudo aos seus confessores, especialmente quando lhe parece que não acertam (cf. 23, 18), mas iremos deter-nos nisto nos seguintes capítulos.

Capitulos 20 a 24

Capítulo 20

Trata da diferença entre união e arroubo. Explica o que é o arroubo e fala do bem que a alma que o Senhor, pela sua bondade, aproxima de Si obtém. Fala dos efeitos que isso produz. Isso é de causar muita admiração.1

1. Eu queria saber explicar, com o favor de Deus, a diferença que há entre união e arroubo, ou enlevo, ou vôo que chamam de espírito, ou arrebatamento, que são uma coisa só. Digo que esses diferentes nomes se referem a uma só coisa, que também se chama êxtase.2 É grande a vantagem que ele tem diante da união. Produz efeitos muito maiores e vários outros benefícios, porque a união parece ser igual no início, no meio e no fim, e o é no interior; mas esses outros fins alcançam um grau mais alto, manifestando-se seus efeitos tanto interior como exteriormente. Que o Senhor o declare como o fez com as outras coisas, pois, por certo, se Sua Majestade não me tivesse dado a entender os modos e formas de dizer, eu não o saberia.

2. Consideremos agora o fato de que esta última água é tão abundante que, se a terra o permitisse, poderíamos crer que já se encontra conosco a nuvem da grande Majestade. Mas quando Lhe agradecemos por esse bem enorme, fazendo obras de acordo com as nossas forças, o Senhor nos colhe a alma tal como as nuvens colhem os vapores da terra, afastando-a por inteiro desta.3 E a nuvem vai ao céu, levada pelo Senhor, que começa a lhe mostrar as coisas do reino que tem preparado para ela. Não sei se a comparação é adequada, mas na verdade é assim que acontece.

3. Nesses arroubos, parece que a alma não anima o corpo, que sente faltar-lhe o calor natural; ele vai se esfriando, embora com uma enorme suavidade e deleite. Aqui, não há como resistir, ao contrário da união, em que ficamos em nosso próprio terreno, podendo quase sempre, mesmo que com sofrimentos e esforços, resistir; nos arroubos, na maioria das vezes, isso não é possível, pois eles amiúde surgem sem que penseis nem coopereis, vindo como um ímpeto tão acelerado e forte que vedes e sentis uma nuvem ou águia possante levantar-se e colher-vos com suas asas.

4. E digo que percebeis e vos vedes levados, sem saber aonde; porque, mesmo com júbilo, a fraqueza que é nosso natural no início nos causa temor, sendo necessária uma alma determinada e corajosa — muito mais do que para o que eu já falei — que arrisque tudo, ocorra o que ocorrer, entregando--se nas mãos de Deus e indo de bom grado para onde for levada, visto que, mesmo resistindo, é levada.

Isso acontece de maneira tão forte que muitas vezes tentei resistir, empregando todas as minhas forças, especialmente em situações públicas, e também estando a sós, pois temia ser enganada; algumas vezes eu conseguia, mas com grande prostração, como quem combateu um forte gigante, ficando depois exausta; outras, eu não o podia: a alma era arrebatada e quase sempre levava a cabeça atrás de si, sem que eu pudesse controlar, havendo ocasiões em que o corpo inteiro ficava suspenso do chão.

5. Isso ocorreu poucas vezes, como certa feita em que estávamos juntas no coro, indo comungar; eu estava ajoelhada e fiquei muito pesarosa, pois me parecia uma coisa muito extraordinária que logo haveria de chamar muita atenção; assim, mandei que as monjas (pois isso se passou depois que assumi o ofício de Priora) não o revelassem. Mas outras vezes, ao perceber que o Senhor ia fazer isso (e, numa delas, na presença de importantes senhoras, pois era a festa da Vocação,4 durante um sermão), eu me estendia no chão, e as irmãs me rodeavam para segurar meu corpo, mas isso não passava despercebido. Supliquei muito ao Senhor que não quisesse mais me conceder graças que tivessem mostras exteriores; porque eu estava cansada de andar com tanta cautela, podendo Sua Majestade conceder-me esse favor sem que os outros o percebessem. Parece que Ele, pela Sua bondade, dignou-se ouvir-me, porque, até agora, isso não voltou a acontecer; é verdade que faz pouco tempo.5

6. Parecia-me, quando eu queria resistir, que se erguiam sob os meus pés forças tão grandes que não sei como explicar, forças muito mais impetuosas do que as presentes em outras coisas do espírito. E eu ficava em pedaços, porque grande é a luta e pouco o seu proveito, porque, quando o Senhor quer, nada se opõe ao Seu poder. Há ocasiões em que Ele se contenta em nos mostrar que deseja nos conceder uma graça e que não faltará; se resistirmos por humildade, Ele produzirá os mesmos efeitos que produziria caso o consentíssemos.

7. São grandes esses efeitos: um deles6 é a demonstração do grande poder do Senhor, a lição de que, quando Sua Majestade o quer, não controlamos o corpo nem a alma, nem somos senhores deles; verificamos que, a despeito de nós, há uma coisa superior, essas graças são dadas por Ele e nada podemos fazer — o que nos traz grande humildade. E eu confesso que tive muito medo e, no princípio, um enorme medo, por ver o corpo se levantar da terra, levado pelo espírito com grande suavidade, quando não se resiste. Não se perdem os sentidos; eu ao menos ficava num estado em que podia perceber que era arrebatada. Mostra-se tão bem a majestade de Quem pode fazer aquilo que os cabelos se arrepiam, ficando um grande temor de ofender a Deus tão grandioso; esse temor vem envolto num enorme amor por Aquele que ama tanto um verme tão podre a ponto de dar a impressão de que não se contenta em levar a alma a Si, querendo levar também o corpo, mesmo sendo este tão mortal e de terra tão suja — pois assim se tornou por causa de suas muitas ofensas.

8. O arroubo deixa também um estranho desapego, que não sei descrever. Acho que posso dizer que é diferente, isto é, maior do que as outras coisas do espírito; porque, embora estas provoquem o desprendimento de todas as coisas no campo do espírito, no desapego o Senhor parece querer que o corpo também seja envolvido, o que cria uma nova estranheza diante das coisas da terra, tornando a vida muito penosa.

9. Depois ele nos traz um tormento que não podemos criar por nós mes mos nem, quando acontece, evitar. Eu queria muito explicar esse sofrimen to tão grande, mas acho que não conseguirei, embora vá dizer alguma coisa. É bom notar que essas coisas7 são recentes, vindo depois de todas as visões e revelações de que vou falar; no tempo em que costumava ter oração, época em que o Senhor me dava grandes consolos e alegrias, bem como agora, já que isso não parou, o mais comum é que venha esse sofrimento de que vou falar. Ele pode ser maior ou menor. Falo agora de quando ele é maior, falando adiante8 dos grandes ímpetos que me acometiam quando o Senhor queria me conceder os arroubos. A dor que eu então sentia em nada se parece com o tormento de que falo agora, distinguindo-se como se distingue uma coisa muito corporal de uma muito espiritual, e creio que não exagero. De fato, o primeiro sofrimento é sentido pela alma, mas esta está acompanhada do corpo e parece que os dois o dividem, não havendo o extremo desamparo de que agora falo.

O segundo sofrimento, como eu disse, não tem a nossa participação; mui tas vezes, vem de repente um desejo cuja origem não se sabe, desejo que pe netra a alma por completo, começando a fatigá-la a tal ponto que ela se eleva acima de si mesma e de toda a criação; Deus a deixa tão isolada de to das as coisas que, por mais que a alma trabalhe, parece-lhe que não há na ter ra quem a acompanhe, nem ela o queria, desejando apenas morrer naquela solidão. Se alguém lhe fala, ela não pode responder, por mais que se esforce, pois o seu espírito não sai dessa solidão. Embora pareça estar muito longe, Deus às vezes lhe comunica Suas grandezas do modo mais estranho que se pode imaginar; assim, não9 se sabe explicar, nem creio que acredite nisso ou o entenda quem não teve a experiência; porque a comunicação não vem consolar, mas mostrar a razão que a alma tem de afligir-se por estar distante do bem que contém em si todos os bens.

10. Crescem com essa comunicação o desejo e a extrema solidão em que a alma se vê, com um pesar tão sutil e penetrante que ela pode dizer ao pé da letra, como se estivesse no deserto (e o disse, na mesma solidão, o real Profeta, que, sendo santo, teve a permissão do Senhor para senti-la de maneira mais extrema): Vigilavi, et factus sum sicut passer solitarius in tecto.10 Assim, vem-me à memória esse verso, e pareço vê-lo realizado em mim, vindo o meu consolo do pensamento de que outras pessoas sentiram essa solidão em tão alto grau. Tem-se a impressão de que a alma não está em si, mas no telhado de si mesma e de toda a criação, e até acima da parte superior de seu espírito.

11. Outras vezes, parece que a alma tem extrema necessidade de Deus, dizendo e perguntando a si mesma: Onde está o teu Deus?11 Devo observar que eu não sabia bem o significado desses versos em romance e, quando pude entendê-lo, consolei-me por ver que o Senhor os tinha trazido à minha memória sem que eu o procurasse. Outras vezes, eu me lembrava de que São Paulo disse que estava crucificado para o mundo.12 Não digo que estou assim, pois bem vejo que não é verdade; mas a alma parece não ter consolo do céu nem estar nele, ao mesmo tempo que não mais habita a terra, cujo consolo não quer; ela parece estar crucificada entre o céu e a terra. Com efeito, o que vem do céu (que é, como eu já disse,13 uma notícia tão admirável de Deus que supera tudo quanto possamos desejar) lhe causa mais tormento, visto aumentar tanto o desejo que às vezes priva a alma dos sentidos, embora por pouco tempo.

Esse sofrimento é semelhante às agonias da morte, mas traz em si tamanho contentamento que não tenho termos de comparação. É um duro martírio delicioso, pois tudo o que é oferecido à alma, mesmo o que costumava agradá-la, é recusado por ela, que não admite nenhuma coisa da terra. Ela bem entende que só deseja o seu Deus; mas não ama uma coisa particular dele, desejando-O por inteiro, e não sabe o que quer. Digo “não sabe” porque a imaginação nada lhe apresenta. Acho até que as suas faculdades não agem em grande parte do tempo em que ela está assim. A dor as suspende, assim como o júbilo o faz na união e no arroubo.

12. Ó Jesus! Gostaria que houvesse alguém que o pudesse explicar a vossa mercê,14 ao menos para que me dissesse o que é, pois assim se encontra sempre a minha alma. De maneira geral, estando desocupada, ela fica com essas ânsias de morte e tem medo, quando vê que elas começam, porque sabe que não vai morrer; mas, quando fica nesse estado, gostaria de viver nesse sofrimento, embora ele seja tão excessivo que mal consigo suportá-lo, o que às vezes me faz perder o pulso quase inteiramente, como dizem as irmãs que se aproximam de mim e que já compreendem melhor a minha situação. Fico com os braços muito abertos e com as mãos tão rígidas que às vezes não con sigo juntá-las; fico com dor nos pulsos e no corpo, como se estivessem desconjuntados, até o dia seguinte.

13. Penso que numa dessas vezes o Senhor será servido, se tudo continuar assim, em me tirar a vida, pois, a meu ver, esse grande sofrimento é ca paz disso, embora eu não o mereça. Nesses momentos, só tenho o desejo de que isso aconteça; não me lembro do purgatório, nem dos grandes pecados que cometi, pelos quais mereceria o inferno. Esqueço tudo no anseio de ver a Deus; e o deserto e a solidão me parecem melhores do que toda a companhia do mundo. Se algo poderia consolar a alma, esse algo seria falar com quem já tivesse passado por esse tormento; mas, embora ela se queixe disso, parece-lhe que ninguém vai lhe dar crédito.

14. Outra fonte de tormento é que, diante de dor tão intensa, a alma não de seja a solidão como antes e só quer a companhia de alguém a quem possa quei xar-se. É como se estivesse sendo enforcada e procurasse tomar fôlego. Creio que essa vontade de ter companhia vem da nossa fraqueza, porque o so frimento como que nos expõe a um perigo mortal (como já estive várias vezes exposta a esse perigo, quando tive graves enfermidades e em outras situações, co mo falei,15 creio que posso afirmar que esse sofrimento é tão grande quanto qual quer outro). O desejo que o corpo e a alma têm de não se separarem é a cau sa do pedido de socorro para tomar fôlego; queremos narrar o nosso sofrimen to, queixar-nos e distrair-nos, buscando conservar a vida, bem contra a vontade do espírito ou da parte superior da alma, que não deseja sair desse penar.

15. Não sei se percebo a verdade ou se sei explicá-lo, mas, pelo que percebo, assim acontece. Veja vossa mercê que descanso pode a alma ter nesta vida, porque o que tinha — a oração e a solidão, que atraíam o consolo do Senhor — agora se tornou, quase sempre, este tormento, que é, porém, tão saboroso e, reconhece a alma, de preço tão alto que ela passa a desejá-lo, preferindo-o, ainda assim, a todas as consolações anteriores. Ela o julga mais seguro por ser o caminho da cruz, que traz em si um gosto de muito valor, porque o corpo só participa do sofrimento, e a alma é quem padece, mas saboreia sozinha o prazer e o contentamento que vêm dessa dor.

Ignoro como isso pode ser dessa maneira, mas de fato acontece assim; acho que não trocaria essa graça dada pelo Senhor (porque bem16 de Sua mão — como eu disse —, pois nada fiz para consegui-lo, por ser ele deveras sobrenatural) por todas aquelas de que falarei; não digo juntas, mas cada uma delas por si. E não deve ser esquecido o fato de isso vir depois de tudo quanto relato neste livro, e daquilo em que o Senhor agora me mantém.17

16. No princípio, eu tinha medo, como ocorre quase sempre que recebo alguma dádiva das mãos de Deus, até que, continuando, Sua Majestade me tranqüiliza. Numa ocasião, o Senhor me disse que não temesse e que valorizasse mais essa graça do que todas as já recebidas, porque, nesse sofrimento, a alma se purifica, tal como o ouro no crisol, para melhor se dispor a receber o esmalte dos Seus dons, padecendo ali o que haveria de sofrer no purgatório.

Eu já entendia que recebia uma grande graça, mas depois disso fiquei muito mais segura. Meu confessor me disse que isso é bom. Embora temendo, por ser tão ruim, eu nunca pude acreditar que isso não fosse bom; o que me fazia temer era a grandeza excessiva do favor recebido, pois me lembrava do meu pouco merecimento. Bendito seja o Senhor, que é tão bom. Amém.

17. Parece que fugi do meu propósito, porque comecei a falar de arroubos,18 embora o que falei seja superior a eles e deixe os efeitos citados.

18. Voltemos agora aos arroubos e aos seus efeitos gerais. Muitas vezes, eu tinha a impressão de deixar o corpo com tanta rapidez que ficava livre do seu peso, chegando mesmo a um ponto em que mal sentia tocar o chão com os pés. Quando está enlevado, o corpo parece morto, sem ação, mantendo--se na posição em que é tomado: se de pé, se sentado, se com as mãos aber tas, se fechadas.19 É rara a perda dos sentidos. Há ocasiões em que os perco por inteiro, mas elas são poucas e é pequena a duração; de modo geral, a alma, mesmo perturbada e sem poder agir no exterior, continua a perceber e ouvir como se estivesse distante.

Não digo que ela perceba e ouça quando se encontra no mais alto grau de arroubo,20 isto é, no tempo em que as faculdades se perdem por estarem unidas a Deus, porque, então, ao que parece, ela nada vê nem ouve nem sente. Mas, como falei ao tratar da oração de união,21 essa transformação total da alma em Deus dura pouco; mas, enquanto dura, nenhuma faculdade age nem sabe o que acontece ali. Não devem ser coisas que se possam entender enquanto se vive na terra; pelo menos Deus não quer que o entendamos, pois não devemos ser capazes disso, o que sei por experiência própria.

19. Vossa mercê há de perguntar como é que o arroubo dura às vezes tantas horas e ocorre muitas vezes. O que acontece comigo é que — como falei na oração passada —22 a felicidade vem com intervalos: de vez em quando, a alma se engolfa ou, melhor dizendo, o Senhor a engolfa em si, e, enquanto Ele a mantém consigo um pouco, ela conserva somente a vontade. Parece-me que o movimento das outras duas faculdades tem como que uma lingüeta de relógio de sol, que nunca pára; mas, quando o quer, o Sol da Justiça as detém. Isto23 é o que digo ter pouca duração; contudo, como o ímpeto e a elevação de espírito foram grandes, mesmo que as outras faculdades voltem a se agitar, a vontade fica mergulhada em Deus e, como senhora do todo, realiza no corpo aquela operação;24 logo, se as duas outras faculdades turbulentas desejarem importuná-la, que sejam as únicas a fazê-lo, não vindo perturbá-la também os sentidos, porque assim quer o Senhor. Na maior parte do tempo, os olhos ficam fechados, mesmo contra a nossa vontade; nas poucas vezes em que ficam abertos, não conseguem, como eu disse,25 perceber ou distinguir o que vêem.

20. Aqui, é muito pouco o que o corpo pode fazer de si para que, quando as faculdades voltarem a se juntar, não haja tanto o que fazer. Por isso, aquele a quem o Senhor conceder isso não deve se desconsolar quando vir o corpo preso assim por muitas horas, com a memória e o entendimento às vezes distraídos. É verdade que, em geral, essas faculdades estão mergulhadas em louvores a Deus ou na busca da compreensão e do entendimento do que lhes ocorreu; mas, mesmo para isso, elas não estão bem despertas, mas como uma pessoa que dormiu muito, e sonhou, e ainda não acabou de despertar.

21. Detenho-me tanto nisso porque sei que existem hoje, neste lugar,26 pessoas a quem o Senhor concede esses favores, e se os que as dirigem não passaram por isso, talvez tenham a impressão de que elas parecem estar mortas no arroubo, especialmente se não forem letrados, e é uma lástima o que se padece com confessores que não o compreendem, como mais tarde falarei.27 Talvez eu não saiba o que digo; vossa mercê saberá dizer se sou coerente, pois o Senhor já lhe deu experiência disso, se bem que não há muito tempo, e é possível que vossa mercê não o tenha considerado tanto quanto eu.

Com efeito, por mais que eu tente, durante longos períodos não há forças no corpo para me mover; a alma as levou todas consigo. Muitas vezes — estando bastante enfermo e cheio de dores —, fica restabelecido28 e com maior capacidade, pois é grandioso o que ali acontece, querendo o Senhor algumas vezes que ele também se beneficie, porque já obedece ao que a alma deseja. Depois que recupera a consciência, se foi grande o arroubo, acontece à alma ficar um dia ou dois, e até três, com as faculdades tão absortas — ou como se estivesse abobada —29 que não parece estar consciente.

22. Vem então a dor de voltar a viver; a penugem já lhe caiu, e a alma tem agora asas para voar bem alto. Ela ergue o estandarte pela causa de Cristo, parecendo que o comandante da fortaleza subiu ou foi levado à torre mais alta para desfraldar a bandeira de Deus. Ela olha para os de baixo como quem está a salvo; já não teme os perigos, mas os deseja, como quem de alguma maneira tivesse a garantia da vitória. Vê-se com muita clareza quão pouco se devem estimar as coisas daqui, que nada valem. Quem está no alto percebe muitas coisas; já não quer querer, nem gostaria de ter livre-arbítrio,30 e assim o suplica ao Senhor, entregando-lhe as chaves de sua vontade.

Eis o jardineiro feito comandante; ele não deseja coisa alguma além da vontade do Senhor nem quer sê-lo31 de si, nem de nada, sequer de uma pêra da horta. Seu único desejo é que, se houver nessa horta alguma coisa boa, Sua Majestade a distribua, porque, doravante, o jardineiro nada quer ter de seu; que Deus disponha de tudo de acordo com a Sua glória e a Sua vontade.

23. E é isso o que acontece quando os arroubos são verdadeiros, ficando a alma com os efeitos e os benefícios indicados. Se os arroubos não fossem verdadeiros, eu muito duvidaria de que viessem de Deus, receando que fossem os acessos de raiva de que fala São Vicente.32 Sei por experiência que numa hora a alma fica senhora de tudo e com liberdade — e até em menos de uma hora —, a ponto de não poder se reconhecer. Ela percebe que não fez nada para receber tanto bem, nem sabe como ele lhe foi dado, mas percebe com clareza o enorme proveito que cada um desses arrebatamentos lhe traz.

Quem não passou por isso não pode acreditar; e assim a pobre alma, cuja grande maldade foi vista e que de repente aspira a coisas tão elevadas, não merece crédito, visto não se contentar em servir pouco ao Senhor, buscando chegar a extremos. As pessoas pensam que isso é tentação e disparate. Se compreendessem que isso não vem dela, mas do Senhor, a quem ela já entregou as chaves de sua vontade, não se espantariam.

24. Tenho para mim que a alma que chega a esse estado já não fala nem age por si, pois o soberano Rei cuida de tudo o que ela há de fazer. Valha--me Deus! Como é clara a declaração do verso e quanta razão tinha o salmista, e têm todos, de pedir asas de pomba.33 Entende-se bem que o espírito dá um vôo para elevar-se acima de todo o criado e, antes de tudo, de si mesmo; mas é vôo suave, vôo jubiloso, vôo sem ruído.

25. Que poder tem a alma que o Senhor transporta até aqui; ela olha tudo sem estar apegada a coisa alguma! Como está longe o tempo em que esteve ape gada! Quão espantada fica ela de sua cegueira! Como lastima os que estão enredados, especialmente se são pessoas de oração a quem Deus já concede favores! Ela gostaria de dizer em voz alta quão enganadas elas estão, e faz isso algumas vezes, atraindo mil perseguições. Ela é considerada pouco humil de, alguém que quer ensinar a pessoas de quem devia aprender, em particular se for mulher. E as pessoas a condenam — e com razão — porque não sabem o ímpeto que a move, ímpeto que às vezes a impede de se conter e a leva a de senganar aqueles de quem gosta, que ela deseja ver livres do cárcere desta vida, pois o cativeiro em que ela esteve não é menor nem lhe parece menor.

26. Ela fica aflita ao lembrar-se da época em que se preocupava com a honra e em que se enganava ao crer que era honra o que o mundo assim diz; ela percebe a grande mentira que isso é e vê que todos nos enganamos; ela percebe que a verdadeira honra não é mentirosa, mas plena de verdade; essa honra valoriza o que de fato tem valor e não leva em conta o que nada vale, porque é nada, e menos que nada, tudo o que se acaba e não alegra a Deus.

27. Ela ri de si mesma, do tempo em que levava em conta o dinheiro e a sua cobiça, embora nesse aspecto eu não creia — e é verdade — que tenha tido culpa, sendo porém grande culpa levar isso em conta. Se com o dinheiro eu pudesse comprar o bem que agora vejo em mim, eu muito o apreciaria; mas vê--se que esse bem só se alcança ao abandoná-lo por inteiro. O que se com pra com esse dinheiro tão desejado? Uma coisa de valor? Um objeto du radouro? Para que o desejamos? Que horrível descanso se procura obter com algo que custa tão caro! Muitas vezes, consegue-se com ele o inferno, com prando-se um fogo inextinguível e dores infinitas. Se todos o desprezassem, o mundo teria muita ordem e alegria! Com que amizade se tratariam todos se não ligássemos para a honra e o dinheiro! Creio que assim tudo seria corrigido.

28. A alma vê a grande cegueira dos prazeres e percebe que, com eles, só consegue sofrimento, mesmo para esta vida, bem como desassossego. Que inquietude, pouco contentamento, trabalho vão! E ela vê não somente as teias de aranha que há em si mesma, suas grandes faltas, como até algum cis co, por menor que seja, já que está exposta a muita luz; assim, por mais que trabalhe para a sua perfeição, se de fato for atingida por este Sol, ela logo se considerará muito impura. É como a água que está num vaso: não sendo ilu minada, parece límpida; se o sol a atinge, logo se vê que está cheia de poeira.

Entenda-se essa comparação literalmente. Antes de alcançar o êxtase, a alma acredita que procura não ofender a Deus e que faz o que pode segundo suas forças; chegando aqui, porém, atinge-a este Sol de Justiça, e ela, abrindo os olhos, vê tanta poeira que desejaria voltar a fechá-los, porque ainda não é tão filha dessa Águia majestosa que seja capaz de olhar este Sol frente a frente; e, por menos que abra os olhos, vê-se toda turva e se recorda do verso que diz: Quem será justo diante de ti?34

29. Quando olha esse sol divino, a alma fica deslumbrada com a claridade. Quando olha para si, a impureza lhe tapa os olhos e essa pombinha fica cega. Assim é que, inúmeras vezes, ela fica totalmente ofuscada, absorta, espantada, desfeita diante de tantas grandezas que vê. Aqui alcança a verdadeira humildade, não dando importância a falar bem de si nem ao que os outros digam. Quem reparte a fruta da horta é o Senhor, e não ela, não tendo a alma nada de seu; todo o bem que possui é dado por Deus, e quando fala algo de si, ela o faz para a Sua glória. Ela sabe que nada tem ali e, mesmo que quisesse, não o poderia ignorar, porque o vê com os seus próprios olhos. Sem que ela cooperasse, o Senhor os fechou às coisas do mundo e fez que ela os tivesse abertos para compreender verdades do espírito.

Capítulo 21

Termina de explicar o último grau de oração. Fala do que sente a alma que o alcança ao voltar a viver no mundo e da luz que o Senhor dá a ela para ver os enganos dele. É boa doutrina.

1. Concluindo o que falava,1 digo que, neste grau, a alma não precisa consentir; ela já pertence ao Senhor e sabe que se entregou em Suas mãos com vontade e que não pode enganá-Lo porque Ele conhece tudo. Não é como aqui, onde a vida está toda cheia de enganos e fingimentos: quando se pensa ter conquistado um coração com base nas provas de afeição que dele vêm, descobre-se que tudo é mentira. Não há quem possa viver com tantas intrigas, especialmente quando há um pouco de interesse.

Bem-aventurada a alma que o Senhor faz entender verdades! Que ótimo estado para os reis! Como seria muito melhor para eles procurá-lo, em vez de um grande reino! Que retidão haveria no reino! Quantos males teriam sido evitados e se evitariam! Nele, não se temeria perder a vida nem a honra por amor de Deus! Que grande bem é esse para quem está mais obrigado a zelar pela honra do Senhor, pois todos o estão menos, já que devem seguir os reis! Por um pequeno aumento da fé e por alguma luz dada aos hereges, perdería mos mil reinos, e com razão. Ganharíamos assim um reino que não se acaba, visto que a alma, ao provar uma única gota de sua água, aborrece de tudo o que há na terra. E que será quando estiver de todo engolfada nele?

2. Ó Senhor! Se me désseis condições para dizer isso em voz alta, não me acreditariam, tal como não acreditam nos que sabem dizê-lo de outra maneira, mas eu ao menos me satisfaria. Parece-me que, para explicar uma única verdade dessas, eu daria de bom grado a vida como coisa de pouco valor; não sei o que faria depois, porque não se pode confiar em mim. Sendo quem sou, tenho grande vontade de dizer isso aos que governam, consumindo-me por nada poder. Assim sendo, volto-me para Vós, Senhor meu, pedindo-Vos um remédio para tudo; e bem sabeis que de muito boa vontade eu me despojaria das graças que me tendes dado, permanecendo num estado que não Vos ofendesse, e as daria aos reis; porque sei que, recebendo-as, eles não poderiam consentir no que agora toleram, daí resultando grandes benefícios.2

3. Ó Deus meu! Fazei-os compreender as suas obrigações, pois quisestes de tal maneira diferenciá-los na terra que, pelo que ouvi dizer, surgem sinais no céu quando levais algum deles desta vida.3 Na realidade, comovo-me ao pensar que desejais que percebam, com essas demonstrações no céu, na época em que morrem, tal como ocorreu na Vossa, que devem imitar-Vos em vida.

4. Atrevo-me muito. Rasgue-o vossa mercê se lhe parecer ruim, e acredite que eu o diria melhor na presença deles, se pudesse ou pensasse que acreditariam em mim, porque os muito encomendo a Deus e gostaria que disso viesse proveito. Por isso valeria arriscar a vida, de que desejo muitas vezes ser privada, e o preço seria pequeno, pois o benefício seria muito; porque não se pode viver quando se vê com os próprios olhos a grande ilusão em que vivemos e a cegueira que demonstramos.

5. Chegando aqui, a alma não deseja apenas a glória de Deus; Sua Majestade lhe dá condições para levar isso a efeito. Não há nada que ela veja e considere que O serve que não se disponha a fazer; e nada faz, porque — como falei —4 ela vê com clareza que só tem valor agradar a Deus. O sofrimento vem do fato de não haver oportunidades disso para pessoas tão inúteis quanto eu. Que um dia, Bem meu, eu possa pagar um centavo do muito que Vos devo. Ordenai, Senhor, de acordo com a Vossa vontade, que esta serva Vossa Vos sirva em algo. Outras também eram mulheres, e fizeram coisas heróicas por amor a Vós. De minha parte, só sei tagarelar e por isso não quereis, Deus meu, levar-me a agir; sirvo somente em palavras e desejos, e nem para isso tenho liberdade, e, caso a tivesse, em tudo cometeria faltas.

Fortalecei minha alma, preparando-a primeiro, Bem de todos os bens e Jesus meu, ordenando em seguida os meios para Vos servir, pois já não suporto receber tanto e nada pagar. Custe o que custar, Senhor, não permitais que eu chegue diante de Vós com mãos tão vazias, pois a recompensa será dada de acordo com as obras. Aqui está a minha vida, aqui está a minha hon ra e a minha vontade; tudo Vos dei, Vossa sou, disponde de mim de acor do com a Vossa vontade. Bem vejo, meu Senhor, que pouco posso; mas, apro ximando-me de Vós, chegando a essa fortaleza de onde se vêem verdades, e não Vos afastando de mim, tudo poderei; se me afasto de Vós, por me nos que seja, voltarei para onde estava, o inferno.

6. O que é para uma alma que aqui chegou ter de voltar a tratar com as pessoas, de olhar e ver a farsa desta vida tão desorganizada, perder tempo com o corpo, dormindo e comendo! Tudo a cansa; ela não sabe como escapar, ven do-se acorrentada e prisioneira. Ela sente mais verdadeiramente o cativeiro do corpo e a miséria da vida. Vê com que razão São Paulo suplicou a Deus que o livrasse dele;5 ao lado do apóstolo, ela pede a Deus liberdade, como falei.6

Aqui, muitas vezes é grande o ímpeto; a alma parece querer sair do corpo em busca de liberdade, já que não a tiram dele. Ela se sente uma es crava em terra estrangeira, e o que mais a cansa é não achar muitas pessoas que se queixem com ela e supliquem por isso; a maioria deseja viver. Se fôssemos desapegados e não tivéssemos contentamento em nenhuma coisa da ter ra, a dor de viver sempre sem Ele compensaria o medo da morte com o desejo de gozar da vida verdadeira!

7. Penso algumas vezes que, se uma pessoa como eu, tendo recebido do Senhor esta luz e sendo tão fraca em caridade e vivendo em tão grande in certeza de alcançar o verdadeiro descanso, por não tê-lo merecido com as mi­nhas obras, sofre tanto por se ver neste desterro, qual seria o sentimento dos santos? O que devem ter passado São Paulo, Santa Madalena e outros, cu jo anseio do amor de Deus era tão intenso? Viver deve ter sido para eles um contínuo martírio.

Parece-me que obtenho algum alívio e consolo no relacionamento com pessoas que também têm esses desejos; falo de desejos acompanhados de obras; digo de obras porque há pessoas que, a seu ver, estão desprendidas e o alar­deiam, e que de fato deveriam estar, pois seu estado o exige, bem como os muitos anos em que vêm seguindo o caminho da perfeição. Mas esta alma conhece de longe os que são perfeitos em palavras e os que tiveram suas palavras confirmadas por obras; ela tem visto o pouco proveito de alguns e o muito de outros, porque quem tem experiência o reconhece com muita facilidade.

8. Citados os efeitos que vêm de Deus…7 é verdade que há maiores ou menores. Menores porque, no início, embora os arroubos os produzam, eles não são muito perceptíveis por não terem sido comprovados por obras. A alma vai crescendo em perfeição e busca afastar os vestígios de impurezas, o que exige algum tempo; quanto mais aumentam o seu amor e a sua humildade, maior o odor que vem dessas flores de virtude para a alma e para os outros. É verdade que o Senhor pode agir de tal maneira na alma num desses enlevos que pouco trabalho lhe resta para alcançar a perfeição, mas quem não tem experiência não pode acreditar no que o Senhor concede aqui nem no fato de não haver esforço nosso capaz de alcançá-lo.

Não afirmo que, passados muitos anos, essa alma não alcance, com a graça de Deus, a perfeição, bem como um grande desapego, com muita labuta, empregando os meios descritos pelos que falaram de oração, de princípios e recursos. Mas não em tão breve tempo como os alcança, sem nenhum esforço, quando o Senhor age e, com determinação, tira a alma da terra e lhe dá domínio sobre tudo o que há nela, mesmo que essa alma não tenha mais merecimento do que a minha, não sendo exagero dizer que não tinha quase nenhum.

9. Sua Majestade o faz porque quer, e como quer,8 e, mesmo que não haja disposição na alma, Ele a dispõe para receber o bem que lhe dá. E nem sempre Ele o dá a quem merece, trabalhando bem no jardim — embora seja certo que quem faz isso bem, procurando desapegar-se, não deixa de ser recompensado —, pois em certas ocasiões deseja mostrar Sua grandeza na pior terra, como eu disse,9 preparando-a para todo o bem; e o faz de tal maneira que ela já não pode viver ofendendo a Deus como o fazia. O seu pensamento se acostuma a tal ponto a compreender a verdade verdadeira que todas as outras coisas lhe parecem brinquedo de criança. Ela ri muito quando vê pessoas graves, dedicadas à oração e vivendo em estado religioso, darem demasiada importância a questões de honra que para ela já não existem. Essas pessoas dizem que têm prudência e que zelam pela dignidade de sua condição para o seu maior proveito. Contudo, maior proveito teriam se renunciassem à honra um único dia do que defendendo-a durante dez anos.

10. Assim, a alma tem uma vida árdua e cheia de cruzes, mas cresce muito. Os que têm relação com ela têm a impressão de que chegou ao auge; mas em pouco tempo ela está muito mais perfeita, porque Deus sempre a favorece mais, pois é alma Sua que está a Seu cargo. Ele a ilumina, parecendo que a assiste e guarda permanentemente para que ela não O ofenda, protegendo-a e despertando-a para que O sirva.

Quando a minha alma recebeu de Deus esse favor tão grande, meus males cessaram e o Senhor me deu forças para me livrar deles. As situações e pessoas que antes me distraíam já não me causavam prejuízo; era como se não existissem; o que outrora me prejudicara passou a me ajudar. Tudo era um meio para mais conhecer e amar a Deus, para ver o quanto Lhe devia e mais lamentar o que eu tinha sido.

11. Eu tinha certeza de que aquilo não vinha de mim nem dos meus esforços, porque ainda não havia tempo para tanto. Sua Majestade me dera forças para isso só por bondade.

Até agora, desde que o Senhor começou a me conceder a graça desses arroubos, essas forças têm crescido, pois Ele, por Sua generosidade, me tem conduzido pela mão para que eu não fraqueje; assim, quase nada faço, e vejo com clareza que é o Senhor quem age.

Isso me faz pensar que as almas às quais o Senhor concede esses favores — almas que, vivendo com humildade e temor, sempre entendem que o próprio Senhor age e elas quase nada fazem — poderiam viver entre quaisquer pessoas; mesmo que fossem as mais distraídas e viciosas, essas pessoas não as abalariam em nada nem as impressionariam, antes10 ajudando-as a ser de tal maneira que obtenham um proveito muito maior. Essas já são almas fortes escolhidas pelo Senhor para fazer o bem a outras, embora sua força não venha delas mesmas. Quando atrai uma alma, o Senhor vai lhe comunicando segredos muito grandes.

12. Nesse êxtase, vêm as verdadeiras revelações, bem como grandes favores e visões, e tudo contribui para apequenar e fortalecer a alma, afastando-a cada vez mais das coisas desta vida e dando-lhe um maior conhecimento da grandeza da recompensa que o Senhor tem preparada para os que O servem.

Queira Sua Majestade que a imensa generosidade que tem tido com esta miserável pecadora sirva de alguma maneira para incitar e animar os que isto lerem a tudo deixar por Deus. Porque, se Sua Majestade paga já nesta vida com tanta abundância, vendo-se com clareza o prêmio e o lucro que recebem os que O servem, como não o fará na outra?

Capítulo 22

Diz que o caminho mais seguro para os contemplativos é não elevar o espírito a coisas superiores se o Senhor não o levanta, e que o meio para a contemplação mais sublime é a Humanidade de Cristo. Fala de uma ilusão em que esteve por algum tempo. Este capítulo é muito proveitoso.

1. Quero dizer uma coisa que me parece importante; se vossa mercê o considerar bom, isso servirá de aviso, talvez de aviso necessário. Porque alguns livros de oração dizem que, embora não possa por si chegar a esse estado, já que tudo é obra sobrenatural do Senhor nela, a alma pode ajudar-se elevando o espírito acima das coisas criadas, fazendo-o com humildade, depois de muitos anos de vida purgativa e de ter aproveitado a iluminativa. Não sei bem por que dizem “iluminativa”; deve ser o caminho dos que vão progredindo.

Esses livros insistem em que se deve afastar toda imaginação corpórea, chegando-se a contemplar a Divindade; eles afirmam que, para quem chegou tão longe, mesmo a Humanidade de Cristo é um embaraço e um empecilho à contemplação mais perfeita. Recorrem esses livros ao que o Senhor disse aos Apóstolos quando da vinda do Espírito Santo — digo, quando subiu aos céus.1 Porque lhes parece que, sendo essa obra toda espiritual, qualquer coisa corpórea a pode impedir ou prejudicar; e que, vendo-se as coisas de modo amplo,2 deve--se considerar que Deus está em toda parte e ver-se engolfado nele.

Isso me parece correto algumas vezes. O que não posso tolerar é o total afastamento de Cristo e a consideração de Seu divino Corpo como membro da relação de nossas misérias e das coisas criadas. Que Sua Majestade me permita saber explicá-lo.

2. Eu não o contradigo, porque os seus autores são letrados, pessoas espirituais, que sabem o que dizem; além disso, Deus conduz as almas por muitos caminhos e veredas. Quero explicar agora como conduziu a minha — nas outras coisas não me intrometo — e o perigo em que me vi por querer seguir aquilo que lia. Acredito que quem chegar a ter união e não passar adiante — isto é, chegar a ter arroubos, visões e outras graças que Deus dá às almas — vai considerar muito boa, como eu considerei, essa doutrina; mas, se eu tivesse continuado a acreditar, creio que nunca teria chegado ao ponto em que estou, porque, a meu ver, ela é errônea. Talvez eu é que esteja enganada; mas vou contar o que me aconteceu.

3. Como não tinha diretor, eu costumava ler tais livros, imaginando ir aos poucos entendendo alguma coisa (mais tarde percebi que, se o Senhor não me mostrasse, eu pouco poderia aprender com os livros, porque nada compreendia até que Sua Majestade me permitia entender por experiência; eu não sabia sequer o que fazia); quando comecei a ter alguma oração sobrenatural, isto é, de quietude, eu procurava afastar todas as coisas corpóreas, embora não me atrevesse a elevar a alma, porque, como era sempre tão ruim, eu sabia ser ousadia. Mas eu tinha a impressão de sentir a presença de Deus, o que é verdade, procurando estar recolhida com Ele — trata-se de oração saborosa, se Deus ajuda, de grande deleite.

Vendo-me com tais proveitos e gostos, não havia o que me fizesse voltar à Humanidade, a qual, para falar a verdade, me parecia um impedimento. Ó Senhor de minha alma e Bem meu, Jesus Cristo crucificado! Não me recordo uma única vez dessa opinião que tive sem sentir pesar; parece-me que cometi uma grande traição, embora por ignorância.

4. Sempre fui muito devota de Cristo (porque isto3 aconteceu depois, sendo pouco o tempo que durou essa opinião) e sempre voltava ao costume de alegrar-me com esse Senhor, em especial quando comungava. Quisera ter sempre diante dos olhos o Seu retrato e a Sua imagem, já que não podia tê--Lo tão gravado na minha alma como desejava.

Será possível, Senhor meu, que tenha estado por um instante no meu pensamento a idéia de que me havíeis de impedir alcançar o maior bem? De onde me vieram todos os bens senão de Vós? Nem quero pensar que fui culpada disso, porque muito me lastimo, sendo a causa, por certo, a ignorância; e Vós quisestes, por Vossa bondade, remediá-la, dando-me alguém para me tirar desse erro, permitindo também que eu Vos visse muitas vezes, como adiante direi,4 para que percebesse com mais clareza quão grande era o erro, e para que eu o dissesse a muitas pessoas, como já o fiz e o faço agora.

5. Tenho para mim que isso é o que impede muitas almas de não aproveitar mais nem alcançar uma liberdade de espírito muito maior quando chegam a ter oração de união. Parece-me que há duas razões para isso, e talvez eu não diga nada pertinente, mas o que digo sei por experiência, já que a minha alma estava muito mal, até que o Senhor a iluminou. Todas as alegrias da alma vinham a sorvos, e ela, saindo dali, não sentia a Companhia que depois teve nos sofrimentos e tentações.

Uma delas é5 certa falta de humildade, estando esta tão escondida e dissimulada que não a sentimos. E quem será o orgulhoso e miserável, como eu, que, quando tiver passado toda a vida com todas as penitências, orações e perseguições que se puderem imaginar, não se considere muito rico e muito bem pago, quando o Senhor lhe consente ficar ao pé da cruz com São João?6 Não sei em que outra cabeça, além da minha, caberia a idéia de não se contentar com isso, perdendo no que havia de ganhar.

6. Porque se, todas as vezes, a nossa condição ou enfermidade não nos permitem, por ser penoso, pensar na Paixão, quem nos impede de estar com Ele depois de ressuscitado, pois tão perto O temos no Sacramento, onde já está glorificado, e onde não o contemplamos tão fatigado e despedaçado, sangrando, cansado de caminhar, perseguido por aqueles a quem fez tanto bem, privado da crença dos Apóstolos?7 Pois com certeza ninguém suporta pensar sempre nos tantos sofrimentos que Ele teve.

Ei-Lo aqui, sem sofrimentos, cheio de glória, confortando uns, animando outros, antes de subir aos céus, nosso companheiro no Santíssimo Sacramento, porque parece que Ele não poderia afastar-se um momento de nós. Mas eu pude afastar-me de Vós, Senhor meu, para melhor servir-Vos! Quando Vos ofendia, eu não Vos conhecia; mas, conhecendo-Vos, como pude pensar em ganhar mais seguindo esse caminho? Ó Senhor, que mau rumo eu seguia! Parece-me que eu me teria perdido se Vós não me fizésseis voltar ao caminho, pois, ao ver-Vos junto a mim, vi todos os bens. Não há sofrimento que eu, vendo o que sofrestes diante dos juízes, não me alegre em padecer. Com tão bom amigo presente, com tão bom capitão, que se ofereceu para sofrer em primeiro lugar, tudo se pode suportar; Ele é auxílio e encorajamento, nunca falta, é amigo verdadeiro.

E vi com clareza, e continuei a ver, que Deus deseja, para O agradarmos e para que nos conceda grandes favores, que os recebamos por meio dessa Humanidade sacratíssima, em que Sua Majestade se deleita.8 Muitíssimas vezes o tenho visto por experiência; o Senhor me disse. Tenho certeza de que temos de entrar por essa porta9 se quisermos que a soberana Majestade nos revele grandes segredos.

7. Assim, que vossa mercê, senhor,10 não deseje outro caminho, mesmo que esteja no auge da contemplação; pois esse caminho é seguro. É por meio desse Senhor nosso que nos vêm todos os bens.11 Ele o ensinará; o melhor modelo é contemplar a Sua vida. Que mais queremos além de um amigo tão bom ao nosso lado, que não nos deixa passar sozinhos por sofrimentos e tribulações, ao contrário dos do mundo? Bem-aventurado quem O amar de verdade e sempre O tiver junto a si. Contemplemos o glorioso São Paulo, de cuja boca só saía o nome de Jesus, tão bem gravado o tinha no coração. Observei com cuidado, depois que compreendi isso, alguns santos, grandes contemplativos, que não seguiam outro caminho. São Francisco dá mostras disso nas chagas; Santo Antônio de Pádua, no Menino; São Bernardo se deleitava com a Humanidade; Santa Catarina de Sena… e tantos outros que vossa mercê conhece melhor do que eu.

8. Deve ser correto apartar-se do corpóreo, porque pessoas muito espirituais o aconselham; mas, para mim, só quando a alma já está muito adiantada, porque, antes disso, está claro, deve-se buscar o Criador por intermédio das criaturas.12 Tudo depende de como o Senhor concede graças a cada alma; nisso não me intrometo. O que eu queria explicar é que a Humanidade sacratíssima de Cristo não faz parte disso. E que se entenda bem esse ponto, que eu gostaria de saber explicar.

9. Quando Deus quer suspender todas as faculdades, como nos modos de oração que vimos,13 está claro que, mesmo sem desejarmos, essa presença nos é tirada. Que ela vá em boa hora; essa perda é ditosa, pois serve para fluirmos mais do que temos a impressão de perder; porque, então, a alma se entrega toda a amar aquilo que o intelecto procurou conhecer; ela ama o que não compreen deu, regozijando-se no que não poderia se comprazer tão bem se não perdesse a si mesma para melhor ganhar. O que não me parece correto é que, intencional e cuidadosamente, acostumemo-nos a não procurar com todas as forças ter sem pre diante dos olhos — e quisera o Senhor que fosse sempre — essa sa cratíssima Humanidade; fazê-lo é ter a alma no ar, como dizem; porque parece que ela não tem apoio, por mais que pense estar plena de Deus.

É muito importante, enquanto vivemos e somos humanos, ter um apoio hu mano, sendo este o outro inconveniente de que falo. O primeiro, como co mecei a dizer,14 é a falta de humildade, que faz a alma querer se levantar antes que o Senhor a eleve, e não contentar-se com meditar uma coisa tão preciosa, pretendendo ser Maria antes de ter trabalhado como Marta.15 Quando o Senhor o permite, mesmo que seja no primeiro dia, não há o que temer; mas sejamos comedidos, como acho que já disse. Esse pequeno argueiro da pouca humildade, embora não pareça ser grande coisa, muito prejudica quem deseja progredir na contemplação.

10. Voltando ao segundo ponto, não somos anjos, pois temos um corpo; querer ser anjo estando na terra — ainda mais do modo como eu estava — é um disparate, devendo-se ter um apoio material para o pensamento; ainda que algumas vezes a alma saia de si ou ande tão plena de Deus que não precise de coisas criadas para atingir o recolhimento, isso não é algo tão comum; quando não é possível ter tranqüilidade, quando se anda às voltas com negócios, perseguições e sofrimentos, e em tempo de aridez, Cristo é um amigo muito bom, porque O vemos Homem, com fraquezas e sofrimentos, e permanecemos em Sua companhia; e, quando nos acostumamos, encontramo--Lo com facilidade junto a nós, embora haja dias em que não conseguimos nem uma coisa nem outra.

Quando isso acontece, é bom aquilo que já falei:16 não procuremos consolos do espírito; aconteça o que acontecer, ficar abraçado à cruz é muito bom. Este Senhor se viu privado de todo o consolo, restando-Lhe apenas os sofrimentos; não O deixemos só, fazendo-O sofrer mais. Ele nos ajudará mais do que os nossos esforços, ausentando-se quando vir que convém e que o Senhor quer tirar a alma de si mesma, como falei.17

11. Muito alegra a Deus que uma alma se sirva humildemente do Seu Filho, amando-O tanto que, mesmo que Sua Majestade queira levá-la a uma grande contemplação — como falei —,18 ela se reconhece indigna, dizendo com São Pedro: Apartai-vos de mim, Senhor, porque sou homem pecador.19

Passei por essa experiência; assim Deus tem conduzido a minha alma. Outros irão, como eu já disse,20 por outro atalho. O que entendo é que todo o alicerce da oração tem como base a humildade e que, quanto mais se humilha na oração, tanto mais a alma é elevada por Deus.21 Não me recordo de ter recebido nenhuma graça especial das que falarei adiante num momento em que não estivesse desfeita por ver que era tão ruim; e Sua Majestade ainda procurava dar-me a entender coisas que eu jamais saberia imaginar para que eu melhor me conhecesse.

Acredito que tudo o que a alma faz para se ajudar nessa oração de união logo volta a desaparecer, mesmo que pareça muito proveitoso, por ser coisa sem fundamento. Receio que, com isso, nunca se alcance a verdadeira pobreza de espírito, que consiste em não buscar consolo nem prazer na oração — porque os da terra já foram abandonados —, mas consolação nos sofrimentos, por amor Daquele que sempre viveu em meio a eles, e em ter paz nos sofrimentos e nas securas. Mesmo que sinta alguma coisa, a alma não deve se inquietar ou perturbar, como o fazem certas pessoas que consideram tudo perdido se não estiverem sempre trabalhando com o intelecto e sentindo fervor, como se, pelos seus esforços, pudessem merecer tão grande bem. Não digo que não se queira estar nem se esteja com reverência diante de Deus; mas que, se não puderem ter um único pensamento bom, como já falei,22 que as pessoas não se matem. Somos servos inúteis; que pensamos poder?

12. O Senhor quer antes que saibamos disso e que sejamos como jumentinhos para trazer a água por meio da nora de que falei;23 porque, mesmo com os olhos fechados e sem saber o que fazem, eles vão tirar mais água do que o jardineiro com todos os seus esforços. Temos de percorrer esse caminho com liberdade, entregues às mãos de Deus; se Sua Majestade quiser que sejamos Seus camareiros e confidentes de Seus segredos, que vamos de boa vontade; se Ele não o quer, que O sirvamos em tarefas subalternas e não nos sentemos no melhor lugar,24 como já falei. Deus tem mais cuidado do que nós e sabe o que é bom para cada um.

Que proveito obtém de governar-se a si quem já entregou toda a sua von tade a Deus? Para mim, tolera-se isso aqui muito menos do que no primei ro grau de oração, havendo muito mais prejuízo; trata-se de bens sobrenaturais: quem tem uma voz ruim não a torna boa, por mais que se esforce para cantar. Se Deus quiser dá-la, só se tem de recebê-la sem esforço. Supliquemos sempre que Ele nos dê Suas graças, com a alma submissa, embora confiante na grandeza de Deus. Como é permitido à alma ficar aos pés de Cristo, que esta não procure sair dali,25 seja qual for a sua condição; que ela imite Madalena e, quando estiver forte, Deus a levará ao deserto.

13. Assim, que vossa mercê, até achar quem tenha mais experiência que eu e saiba melhor, acredite nisso. Se forem pessoas que começam a gostar de Deus, não lhes dê crédito, pois elas têm a impressão de que aproveitam e obtêm mais prazer ajudando-se a si mesmas.26 Quando o Senhor quer, apresenta-se por inteiro sem essas ajudazinhas! Por mais que façamos, Ele arrebata o espírito, como um gigante a uma palha, e não há quem resista — como crer que, quando o quer, Ele espere que o sapo voe por si mesmo? O nosso espírito fica ainda mais pesado e difícil de levantar quando Deus não o eleva; estando carregado de terra e de mil impedimentos, pouco o beneficia o querer voar. Porque, embora isso seja mais natural para ele do que para o sapo, o espírito está tão mergulhado na lama que perdeu essa capacidade por sua própria culpa.

14. Quero concluir dizendo: sempre que pensarmos em Cristo, lembremo--nos do amor com que nos deu tantas graças e da grande prova que Deus nos dá disso ao nos conceder esse penhor do muito que nos ama; recordemo-nos de que o amor gera amor. E, mesmo que seja bem no princípio e embora sejamos muito ruins, procuremos ver isso sempre, e despertemo-nos para amar; porque, se o Senhor nos conceder uma vez o favor de que esse amor fique impresso no nosso coração, tudo ficará fácil, e faremos muito com rapidez e sem esforço. Que Sua Majestade nos dê esse amor — pois sabe o quanto ele nos convém —, em nome do amor que nos teve e do Seu Filho glorioso, que com muitos sofrimentos no-lo mostrou. Amém.

15. Desejo perguntar uma coisa a vossa mercê: por que, começando o Senhor a conceder graças a uma alma, e graças tão elevadas, como levá-la à perfeita contemplação, não fica ela logo totalmente perfeita (e com razão, porque quem recebe semelhante favor não devia mais querer consolos na terra)? Quando ela chega a ter arroubos e já está mais habituada a receber graças, por que será que os efeitos não ficam mais elevados? A alma deveria ficar tanto mais desapegada quanto mais se multiplicassem as graças; chegando a esse ponto, não poderia o Senhor santificá-la de uma vez, da mesma maneira como, mais tarde, com a passagem do tempo, vai aperfeiçoando-a nas virtudes?27

Isso eu gostaria de saber, pois o ignoro; mas sei que a força que Deus infunde no princípio, quando essa graça dura somente um piscar de olhos e só é perceptível pelos efeitos, é diferente da que vem de uma concessão mais generosa desse favor. E muitas vezes eu tenho a impressão de que o problema está em a alma não se dispor logo por inteiro, devendo o Senhor, pouco a pouco, educá-la, torná-la determinada, dando-lhe forças viris, para que ela tudo ponha inteiramente sob os pés. Tal como Ele o fez com Madalena num breve instante, o faz com outras pessoas, na medida da sua entrega à ação divina. Nunca acreditaremos o bastante no fato de Deus recompensar, ainda nesta vida, concedendo cem por um.28

16. Também pensei nesta comparação: as almas adiantadas e principiantes recebem o mesmo alimento, um manjar de que comem muitas pessoas. As que comem pouco ficam somente com o bom sabor por algum tempo; as que comem um pouco mais obtêm dele a ajuda para se sustentar; as que comem muito recebem alento e força. É possível que se coma tantas vezes, e com tanto proveito, desse manjar da vida que já não se possa comer qualquer outra coisa; porque se vê o benefício que ele traz e fica-se com o paladar tão afeito a esse gosto suave que se prefere morrer a comer outras coisas, que só servem para tirar o gosto agradável deixado pelo bom manjar.

Também privar de uma companhia santa não traz tanto benefício num dia como em muitos; e podem ser tantos os dias em que estamos com ela que, se Deus nos favorecer, nos tornemos como ela. Na verdade, tudo depende do que Sua Majestade quer dar e a quem quer dar; mas é muito importante que a alma que começa a ser agraciada se desapegue de tudo e aprecie devidamente esse favor.

17. Também tenho a impressão de que Sua Majestade procura descobrir quem O ama ou não. E Ele revela quem é, com um deleite muito soberano, capaz de avivar a fé — caso esta esteja amortecida — naquilo que há de nos dar, dizendo: “Olhai, que isto é uma gota do imenso mar de bens”. Ele nada deixa por fazer àqueles a quem ama. E, vendo que O recebem, dá e se dá a Si mesmo. Ele ama a quem O ama; e como sabe amar e que bom amigo é! Ó Senhor de minha alma, quem dera que eu tivesse palavras para explicar o que dais a quem confia em Vós e o que perde quem chega a esse estado e fica apegado a si mesmo! Vós não desejais isso, pois fazeis muito mais vindo a uma pousada tão ruim quanto a minha. Bendito sejais por todo o sempre!

18. Volto a suplicar a vossa mercê que, se tratar dessas coisas de oração que escrevi com pessoas espirituais, que elas o sejam de fato; porque, se não conhecerem senão um caminho ou se tiverem ficado na metade dele, elas não o poderão compreender. E há algumas que são levadas desde o início por um caminho muito elevado; a essas parece que outros também poderão tirar proveito ali, aquietando o intelecto, sem se valerem de coisas materiais — ficando assim secas como paus. Outras, tendo tido um pouco de quietude, logo pensam que, como têm uma coisa, podem fazer a outra; e, em vez de aproveitarem, desperdiçam, como eu disse.29 Em resumo, em tudo há necessidade de experiência e discernimento. Que o Senhor no-los conceda pela Sua bondade.

Capítulo 23

Retoma a narração de sua vida e diz como começou a crescer na perfeição e por que meios. É proveitoso para as pessoas que se encarregam de dirigir almas que têm oração saberem como devem agir no princípio e tomarem conhecimento do benefício que obteve por ter encontrado quem a dirigisse.

1. Quero agora voltar ao ponto em que interrompi a narração da minha vida,1 pois creio que me desviei mais do que devia para que se entendesse melhor o que vem a seguir. Daqui por diante, é um novo livro, isto é, uma vida nova. A que levei até aqui era minha; a que passei a viver depois que comecei a falar dessas coisas de oração é a que Deus vive em mim. Porque entendo que era impossível sair por mim mesma em tão pouco tempo de costumes e ações tão maus. Louvado seja o Senhor, que me livrou de mim mesma.

2. Tão logo abandonei as ocasiões e me dediquei mais à oração, o Senhor começou a dar-me graças, como quem desejasse, ao que parece, que eu as quisesse receber. Sua Majestade passou a me conceder com freqüência a oração de quietude e, muitas vezes, de união, que durava um longo tempo. Como naquela época havia casos de grandes ilusões e enganos provocados nas mulheres pelo demônio,2 eu comecei a temer, visto serem grandes o de­leite e a suavidade que eu sentia, amiúde sem poder evitar, por ver em mim uma enorme segurança que era Deus, em especial quando estava em oração. Eu via que, nessa condição, ficava muito melhor e mais forte; mas, quando me distraía um pouco, voltava a ter medo e a pensar se o demônio não que reria, fazendo-me entender que era bom, suspender-me o intelecto para pri var-me da oração mental, impedindo-me de pensar na Paixão e de me be neficiar do raciocínio, pois isso me parecia a maior perda, porque eu não com preendia as coisas.

3. Contudo, como Sua Majestade já queria me iluminar para que eu não O ofendesse e reconhecesse o muito que Lhe devia, esse temor aumentou tanto que fui procurar com urgência pessoas espirituais com quem tratar, pois já tinha conhecimento de algumas, visto a minha casa ter sido visitada por membros da Companhia de Jesus, de quem eu — sem conhecer nenhum deles — gostava muito, só por conhecer o seu modo de vida e de oração. Mas eu não me considerava digna de falar com eles nem capaz de obedecer-lhes, o que me trazia mais medo, pois me parecia muito difícil suportar tratar com eles e permanecer sendo quem era.

4. Assim continuei por algum tempo, até que, com muita luta e temores, decidi procurar uma pessoa espiritual para perguntar-lhe o que era a oração que eu tinha, para que ela me desse luz, explicando-me se eu estava errada, ajudando-me a fazer tudo o que eu pudesse para não ofender a Deus; porque, como eu disse,3 a falta de coragem que via em mim me deixava muito tímida. Que erro tão grande, valha-me Deus: por querer ser boa, eu me afastava do bem! O demônio deve fazer muita oposição aos iniciantes no caminho da virtude, pois eu não conseguia vencê-la. Ele sabe que todo o recurso de uma alma está em se relacionar com amigos de Deus, e por isso eu nunca conseguia me decidir a fazê-lo. Eu esperava me corrigir antes, como quando deixei a oração,4 o que jamais deveria ter feito, pois já estava tão envolvida em coisinhas de mau costume, sem conseguir perceber que eram más, que precisava da ajuda de outros que me dessem a mão para me levantar. Bendito seja o Senhor, pois a Sua mão foi a primeira.

5. Como vi que o meu temor crescia, porque a oração progredia, pensei que nisso havia grande bem ou imenso mal; eu já compreendia que tinha uma coisa sobrenatural, porque às vezes não podia resistir-lhe nem conseguia tê--la quando desejava. Pensei comigo que não havia remédio se não procurasse ter a consciência limpa e afastar-me de toda ocasião de pecado, mesmo venial; se isso vinha do espírito de Deus, o benefício era claro; se vinha do demônio, o fato de eu procurar alegrar o Senhor e não ofendê-Lo fazia com que eu me prejudicasse pouco, ao mesmo tempo que derrotava o demônio. Determinada, e suplicando sempre a Deus que me ajudasse, agi assim por algum tempo e vi que a minha alma não tinha força para manter-se tão per feita sozinha, devido a alguns apegos a coisas que, embora não fossem más em si, bastavam para estragar tudo.

6. Falaram-me de um culto sacerdote5 neste lugar, cuja bondade e vida santa o Senhor começava a mostrar às pessoas. Eu o procurei por meio de um fi dalgo santo6 que vive aqui. É casado, mas tem vida tão exemplar e virtuosa, e de tanta oração e caridade, que em todo o seu ser resplandecem a bondade e a perfeição. E com muita razão, porque grande bem tiveram muitas almas por seu intermédio, visto ter ele tantos talentos que, embora a sua condição não o ajude, não pode deixar de praticar boas obras: é muito inteligente e muito amável com todos; sua conversa não é monótona, mas suave e gracio sa, além de reta e santa, dando grande contentamento a quem com ele se relaciona. Ele tudo faz para o grande bem das almas com quem conversa, não tendo outro desejo senão beneficiar a todos, dando-lhes contentamento.

7. Pois esse bendito e santo homem, com seu engenho, me parece ter sido o princípio da salvação da minha alma. Sua humildade me provoca admiração. Ele, pelo que sei, há cerca de quarenta anos tem oração — talvez com uma diferença de dois ou três anos a menos — e leva a vida de maior perfeição que seu estado lhe permite; pois tem uma mulher tão grande serva de Deus e tão caridosa que só pode ajudá-lo; em suma, Deus a escolheu como esposa de alguém que Ele sabia que viria a ser um grande servo Seu. Alguns dos seus parentes tinham desposado pessoas da minha família,7 havendo também um estreito relacionamento seu com outro servo de Deus casado com uma prima minha.

8. Por esse meio, procurei que viesse falar-me o sacerdote que eu disse ser tão servo de Deus,8 muito amigo daquele fidalgo. Eu pretendia tê-lo como confessor e diretor. O fidalgo o trouxe para que eu lhe falasse; eu me senti muito confusa na presença de homem tão santo e falei-lhe apenas da minha alma e da minha oração, pois ele não quis confessar-me, dizendo que era muito ocupado, o que era verdade. Ele começou com a santa resolução de conduzir-me como alma forte — pois havia razão para que eu assim fosse, a julgar pela oração que ele viu que eu tinha —, a fim de que eu, de nenhuma maneira, ofendesse a Deus. Vendo sua determinação imediata em coisinhas que eu, como disse,9 não tinha forças para enfrentar com tanta perfeição, fiquei aflita, e, percebendo que ele considerava as coisas da minha alma dificuldades que seriam vencidas de uma só vez, vi que tinha necessidade de muito mais cuidado.

9. Enfim, entendi que os recursos que ele me oferecia não me levariam a me remediar, por serem adequados a uma alma mais perfeita, enquanto eu, embora avançada nas graças de Deus, mal começava a praticar as virtudes e a mortificação. Se eu tivesse de tratar somente com ele, creio que certamente a minha alma nunca iria progredir, porque a própria aflição que me dava por eu ver que não fazia — nem parecia poder fazer — o que ele me dizia era suficiente para que eu perdesse a esperança e abandonasse tudo.

Fico algumas vezes espantada com o fato de que, sendo ele uma pessoa que tem a graça particular de conduzir a alma de principiantes a Deus, não tivesse podido entender a minha, nem se dispusesse a encarregar-se dela; e vejo que tudo foi para o meu maior bem, para que eu conhecesse e me relacionasse com pessoas tão santas quanto as da Companhia de Jesus.

10. Combinei com esse fidalgo santo que me visitasse algumas vezes. Aqui se provou sua grande humildade, pois ele se dispôs a tratar com uma pessoa tão ruim quanto eu. Ele começou a visitar-me, animando-me e dizendo que eu não pensasse que um dia me afastaria de tudo de uma vez, e que Deus faria isso aos poucos. Contava-me que, durante anos, ele mesmo estivera envolvido com coisas ruins, não as tendo podido acabar por si mesmo. Ó humildade, que grandes bens fazes onde te encontras e aos que se aproximam de quem te tem! Dizia-me esse santo (que, a meu ver, posso chamar assim), para me beneficiar, que tinha fraquezas — porque, com sua humildade, ele assim as considerava; mas, levando-se em conta o seu estado, não eram faltas nem imperfeição, ao passo que, para o meu, o eram em alto grau.

Não é sem razão que digo isso, embora pareça que me estendo em detalhes: isso importa muito para que uma alma comece a aproveitar e para levá-la a voar (mesmo sem asas, como dizem), o que só pode receber crédito de quem tiver passado por isso. Faço-o também porque espero em Deus que vossa mercê beneficie muitos. Digo que toda a minha salvação foi ter quem soubesse me curar, tivesse humildade e caridade para ficar comigo e sofresse ao ver que eu não me corrigia de todo. Discretamente, ele ia me ensinando aos poucos várias maneiras de vencer o demônio. Comecei a ter tamanho afeto por ele que não havia maior descanso do que o dia em que o via, embora isso não fosse muito freqüente. Quando ele demorava a me visitar, eu ficava muito aflita, crendo que, por ser eu tão ruim, não viesse mais.

11. Como ele foi percebendo minhas imensas imperfeições, e talvez pecados (embora depois do meu contato com ele eu estivesse melhor), e como eu lhe contasse das graças que Deus me concedia, para que ele me esclarecesse, disse-me o fidalgo que uns e outros não eram compatíveis entre si, pois aqueles regalos eram de pessoas muito avançadas e mortificadas, razão por que não podia deixar de temer muito, pois algumas coisas lhe pareciam vir do mau espírito, apesar de ele não chegar a uma conclusão definitiva. Ele me disse que refletisse bem sobre tudo o que percebia em minha oração e lhe contasse. Isso era difícil para mim, que não sabia dizer nada sobre o que era a minha oração, porque essa graça de entender o que ela é, e de poder explicá-la, me foi dada por Deus há pouco tempo.

12. Quando ele me disse isso, como eu já estivesse com medo, foi grande a minha aflição, e muitas as lágrimas que derramei; porque, é claro, eu desejava contentar a Deus e não podia me convencer de que aquilo fosse obra do demônio. Mas temia que, devido aos meus grandes pecados, Deus me cegasse para que eu não o entendesse. Olhando livros para ver se conseguia uma descrição da oração que eu tinha, encontrei em um, Subida del Monte,10no tocante à união da alma com Deus, todos os sinais que se manifestavam em mim, notadamente a impossibilidade de pensar. Pois isso era o que eu mais observava: quando tinha aquela oração, eu não podia pensar; sublinhei essas passagens e dei-lhe o livro, para que ele e o clérigo a que me referi11 olhassem e me dissessem o que devia fazer. Eu lhes disse que, se essa fosse a sua opinião, eu deixaria a oração por inteiro, pois não havia motivo para me expor a tais perigos. Porque, se ao fim de quase vinte anos de prática12 nada conseguira lucrar — só tendo obtido enganos do demônio —, melhor seria deixá-la, embora isso também fosse muito ruim, visto eu já saber como ficava a minha alma sem a oração. É grande o sofrimento que disso advém, como quem cai no rio e, vá para onde vá, vê maior perigo, estando prestes a se afogar.

Este é um grande sofrimento, e desse tipo tenho tido muitos, como fa larei adiante.13 Embora pareça não importar muito, talvez seja benéfico en tender como se há de provar o espírito.

13. E é sem dúvida grande a aflição por que passamos, sendo necessária a prudência, em especial quando se é mulher, porque, sendo grande a nossa fraqueza, seria muito ruim dizer com clareza que se trata de obra do demônio; é preferível observar muito bem, afastando-as dos perigos que possa haver, avisando-as discretamente, e mantendo o segredo, porque assim convém.

Falo isso porque muito sofri pelo fato de algumas pessoas com quem tratei da minha oração não terem sido discretas, falando com uns e outros, causando-me, por bem, imenso dano, divulgando coisas que ficariam melhor ocultas — pois não são para todos — e dando a impressão de que eu as tornava públicas. Creio que o Senhor permitiu que assim agissem, sem culpa sua, para que eu padecesse. Não digo que revelassem segredos da confissão; contudo, como eram pessoas a quem eu contava meus temores para que me esclarecessem, eu achava que tinham de ficar caladas. Todavia, nunca ousei ocultar-lhes coisa alguma.

Afirmo, pois, que se alertem as pessoas com muita prudência, estimulando-as e aguardando: o Senhor as ajudará como ajudou a mim. Se Ele não me tivesse ajudado, eu me teria prejudicado muito, temerosa e medrosa que era. Como eu sofria muito do coração, espanto-me que isso não tenha me trazido muitos malefícios.

14. Dei o livro e um relato14 da minha vida e dos meus pecados, que fiz o melhor que pude (não como confissão, por ser ele secular, mas dando bem a entender quão ruim eu era), para que os dois servos de Deus verificassem, com sua grande caridade e amor, o que era conveniente para mim.

Quando veio a resposta que eu, muito temerosa, esperava, depois de ter pedido a muitas pessoas que me encomendassem a Deus e de ter feito muitas orações naqueles dias, o fidalgo, muito aflito, veio a mim e me disse que, ao ver de ambos, se tratava do demônio, sendo recomendável que eu procurasse um padre da Companhia de Jesus, que viria se eu o chamasse dizendo quanta necessidade tinha; eu deveria contar-lhe toda a minha vida, numa confissão geral, falando-lhe de minha condição, de maneira muito explícita. A virtude do sacramento da confissão lhe daria, com a graça de Deus, mais luz; disseram-me que esses padres têm muita experiência nas coisas do espírito e que eu não deveria descuidar daquilo que me dissesse, pois corria grande risco se não houvesse quem me dirigisse.

15. Isso me trouxe tanto medo e pesar que só pude chorar. Estando num oratório, desfeita, sem saber o que haveria de ser de mim, li num livro que o Senhor parece ter posto em minhas mãos, o que dizia São Paulo: Deus é muito fiel e jamais consente que os que o amam sejam enganados pelo demônio.15 Isso me trouxe muito consolo.

Comecei a cuidar da minha confissão geral, anotando todos os males e bens, narrando a minha vida da maneira mais clara que podia, sem omitir nada.16

Recordo-me que, depois de escrever, vi muitos males e quase nenhum bem, o que me deu muita dor e aflição. Eu também sofria pelo fato de me verem tratar em casa com pessoas santas como as da Companhia de Jesus, temendo pela minha ruindade, pois me parecia, fazendo isso, ficar mais obrigada a não ser tão ruim e a afastar-me dos meus passatempos, porque, se não o fizesse, estaria agravando a minha situação. Por essa razão, pedi à sacristã e à porteira que não o revelassem a ninguém. Isso pouco me valeu, porque estava à porta, quando me chamaram, quem o contou a todo o convento. Que empecilhos e temores põe o demônio no caminho de quem deseja chegar a Deus!

16. Tratando com aquele servo de Deus17 — muito dedicado e prudente —, revelei-lhe tudo o que me ia na alma. Bom conhecedor dessa linguagem, ele me disse o que era e muito me estimulou. Afirmou ser notoriamente es pírito de Deus, mas que havia necessidade de que eu recomeçasse a oração, porque ela não estava bem fundada, e eu não tinha começado a entender a mortificação (e isso era tão verdadeiro que até o nome eu parecia não entender). Eu de nenhuma maneira deveria deixar a oração, sendo preciso que eu me esforçasse muito, já que o Senhor me concedia favores tão particulares. Ele declarou que talvez o Senhor quisesse, por meu intermédio, beneficiar muitas outras pessoas, bem como fazer outras coisas (parece que ele profetizou o que depois o Senhor fez comigo), e que eu seria muito culpada se não correspondesse às graças que Deus me dava. Em tudo me parecia falar nele o Espírito Santo, para curar a minha alma, tamanha a força com que se imprimiam nela as palavras dele.

17. Isso me deixou muito confusa, levando-me por caminhos que me davam a impressão de que eu me tornara uma pessoa completamente diferente. Que grande coisa é compreender uma alma! Ele me disse que eu orasse todos os dias com uma passagem da Paixão, que me beneficiasse de Cristo e não pensasse senão em Sua Humanidade, e que resistisse o quanto pudesse aos recolhimentos e gostos, só permitindo que ocorressem quando ele me ordenasse outra coisa.

18. Ele me deixou consolada e estimulada; o Senhor me ajudou, e a ele, para que entendesse a minha condição e a maneira de me dirigir. Fiquei determinada a não me desviar do que ele me mandasse em nenhuma coisa, e tenho agido assim até hoje. Louvado seja o Senhor, que me deu a graça de obedecer aos meus confessores, ainda que de modo imperfeito; tenho tido como confessores, quase sempre, esses benditos homens da Companhia de Jesus e, como digo, eu os tenho seguido, se bem que imperfeitamente.

A minha alma começou a ter uma sensível melhora, como agora direi.

Capítulo 24

Prossegue no relato iniciado e conta como a sua alma foi progredindo depois que começou a obedecer, dizendo quão pouco lhe adiantava resistir às graças de Deus e como Sua Majestade continuava a dá-las com maior abundância.

1. Depois dessa confissão, a minha alma ficou com tanta paz que eu tinha a impressão de que não havia nada a que eu não me dispusesse. Assim, comecei a mudar muitas coisas, embora o confessor não me pressionasse, parecendo antes não fazer caso de nada. Isso me estimulava mais, pois me levava pelo caminho do amor a Deus, dando-me liberdade para que eu agisse por amor, e não pela recompensa.

Assim fiquei quase dois meses, tudo fazendo para resistir aos regalos e graças de Deus. Quanto ao exterior, a mudança era perceptível, porque o Senhor já começava a me dar forças para suportar certas coisas que pessoas que me conheciam consideravam extremas, inclusive as da minha casa.1 Levando em conta o que eu fazia antes, elas tinham razão em pensar assim; mas, considerando as obrigações que o meu hábito e profissão impunham, isso não era nada.

2. Resistindo a esses gostos e regalos de Deus, consegui que Sua Majestade me ensinasse; porque, antes, eu pensava que, para que Ele me desse regalos na oração, precisava de total isolamento, e quase não me atrevia a me mexer. Depois percebi que isso pouco adiantava; porque, quanto mais eu procurava me distrair, tanto mais o Senhor me cobria de uma suavidade e de uma glória que me pareciam rodear por inteiro, deixando-me sem condições de fugir. Era tanta a minha preocupação que eu muito sofria. O Senhor se preocupava mais em me conceder favores e a se manifestar mais intensamente nesses dois meses, para que eu melhor compreendesse que não podia resistir-Lhe.

Comecei a sentir de novo amor pela sacratíssima Humanidade. A minha oração melhorou, como um prédio melhor assentado; passei a ter afeição pelas práticas de penitência que não costumava seguir devido às minhas grandes enfermidades. Aquele santo homem a quem me confessei me disse que algumas coisas não poderiam me prejudicar e que, se porventura Deus me mandava tanto sofrimento, isso devia ser por causa de eu não fazer penitência, desejando Sua Majestade que eu a fizesse. Ele me mandava praticar algumas mortificações de que eu não gostava muito. Porém, eu tudo fazia, por achar que o Senhor o tinha enviado a mim, dando-lhe a graça de me ordenar de uma maneira que me fizesse obedecer. A minha alma já começa a se ressentir de qualquer ofensa que fizesse a Deus, por ínfima que fosse, razão por que, enquanto houvesse alguma coisa supérflua, eu não podia ficar em recolhimento. Eu rezava muito para que o Senhor me levasse pela mão; tratando com seus servos, eu Lhe pedia que me permitisse não recuar, pois isso me parecia ser um grande delito, capaz de fazê--los perder crédito por minha causa.

3. Nessa época, veio a este lugar o Padre Francisco,2 que era duque de Gan día e que, há alguns anos, tinha abandonado tudo e entrado na Companhia de Jesus. Meu confessor3 fez com que eu travasse contato com ele; o fidalgo de que falei também veio a mim, pedindo que eu lhe falasse e contasse sobre a oração que tinha, pois sabia que o Padre Francisco vivia num alto grau de contemplação, sendo muito favorecido e consolado por Deus; desde aquele momento, Deus o recompensava por ter ele deixado tudo pelo Senhor.

Tendo me ouvido, ele declarou tratar-se do espírito de Deus, parecendo--lhe ruim resistir-lhe, embora até então isso não tivesse feito mal. Ele me recomendou que eu sempre começasse a oração com uma passagem da Paixão e que, caso depois o Senhor me arrebatasse o espírito, eu não resistisse, mas me deixasse levar por Sua Majestade, também não O procurando. Como praticante avançado, ele me deu remédios e conselhos, visto que a experiência é muito importante nesse aspecto. Ele me disse que seria um erro resistir por mais tempo. Isso trouxe muito consolo a mim e ao fidalgo, que se alegrou muito por saber que tudo vinha de Deus. Ele sempre me ajudava e avisava no que podia, que era muito.

4. Nessa época, transferiram meu confessor,4 o que senti muitíssimo, pois pensei que voltaria a ser ruim, não me parecendo possível encontrar outro como ele. A minha alma ficou como num deserto, muito desconsolada e temerosa. Eu não sabia o que fazer de mim. Uma parente minha levou-me para sua casa, e procurei logo arranjar outro confessor na Companhia. Quis o Senhor que eu começasse a fazer amizade com uma senhora viúva, muito nobre e dedicada à oração, que tinha constante contato com os jesuítas.5 A instâncias dela, seu próprio diretor me ouviu. Fiquei vários dias em sua casa, porque ela morava perto dos padres, e eu gostava muito de conversar com eles; a minha alma muito se beneficiava só por ver a santidade de sua vida.

5. Esse padre6 passou a exigir de mim mais perfeição. Dizia-me que, para contentar por inteiro a Deus, nada era demais. Ele o fazia com tato e suavidade, porque a minha alma ainda não estava nada forte, e sim bem frágil, em especial no tocante a certas amizades; embora manter essas amizades não ofendesse a Deus, a afeição era muita, parecendo-me ser ingratidão abandoná-las. Eu lhe dizia que, como não ofendia a Deus, eu não tinha por que ser mal agradecida. Disse-me ele que eu me encomendasse a Deus por alguns dias e rezasse o hino Veni, Creator, para que Ele me desse luz sobre a melhor decisão a tomar. Certo dia, depois de muita oração e súplicas ao Senhor para que me ajudasse a contentá--Lo em tudo, comecei o hino e, quando o rezava, veio-me um arrebatamento tão repentino que quase me tirou de mim, coisa de que não pude duvidar, por ter sido muito manifesto. Essa foi a primeira vez que o Senhor me concedeu o favor dos arroubos. Entendi as palavras: Já não quero que fales com homens, mas com anjos.7 Isso me causou um grande espanto, porque a moção da alma foi grande e porque essas palavras, ditas no fundo do meu espírito, me causaram temor. Contudo, também me deram grande consolo, que permaneceu depois que se foi o temor, que, assim me pareceu, foi provocado pela novidade do fato.

6. Essas palavras se cumpriram, pois nunca mais consegui permanecer em amizades nem ter consolo nem afeição particular senão por pessoas que, pelo que percebo, amam a Deus e procuram servi-Lo. Mesmo que se trate de parentes e amigos, não tenho como agir de outro modo. Tratar com quem não ama a Deus nem se dedica à oração se tornou uma penosa cruz. Assim é, segundo me parece, sem nenhuma exceção.

7. Desde aquele dia, fique animada a deixar tudo por Deus, de uma maneira que me deu a impressão de que Ele quis, naquele momento — pois não me parece ter sido mais do que isso —, transformar por inteiro Sua serva. Assim, não foi necessário que me mandassem fazê-lo; o confessor, vendo-me tão apegada até então, não se atrevera a me dizer de modo patente que abandonasse as amizades. Ele devia estar esperando que o Senhor agisse como agiu. De minha parte, nunca pensei que o conseguisse; eu já tentava fazê-lo, mas era tanta a dor que sentia que desistia, ainda mais por não ver nessas amizades nenhum inconveniente. Naquele momento, porém, o Senhor me dera liberdade e força para levá-lo a efeito. Eu disso isso ao confessor e tudo abandonei, seguindo sua determinação. A pessoa com quem eu conversava tirou muito proveito do fato de ver que eu estava decidida.

8. Bendito seja Deus para sempre, por ter me dado, num instante, a liberdade que eu, com todos os esforços que fizera por muitos anos, não pude alcançar sozinha, tendo chegado muitas vezes a ponto de me exaurir tanto que abalava a própria saúde. Como foi dada por Aquele que é poderoso e Senhor verdadeiro de tudo, essa liberdade não me causou nenhum sofrimento.